Paisagem entre telas

My dearest,

(nunca resisto à afetação desse vocativo!) te escrevo deste lugar onde passo quarenta horas semanais, sem que possa às vezes enxergar o céu ou saber do clima lá fora. Sou livre nas poucas horas que passo fora daqui, mas você sabe que há tantas outras coisas a fazer: amar, cozinhar, comer, ler, dormir, cuidar das minhas gatas. (Por causa da claustrofobia, trabalharia na varanda, mas não tenho muita escolha a não ser achar que a tela do computador pode ser uma janela.)

Aproveito meu horário de almoço pra te descrever um pouco da paisagem que vejo desta tela. 2013, você sabe, não está fácil. Eu tinha dito que seria ruim comentar algumas coisas, mas você disse que seria um exercício escrever uma carta depois de tanto tempo – e pra alguém tão próximo.  Aceitei o desafio, mesmo sabendo que a minha caligrafia está piorando a cada dia. (Há muito que rabisco poucas anotações que só eu entendo.)

Tou naquela fase que com o fim do ano vem a melancolia pré-festas, sabe? A depressão ganha contorno quando a decoração de inverno começa a surgir em pleno verão nas janelas dos prédios, nos shoppings, nas avenidas e logo na TV também! Então, claro que não falarei de coisas boas…

Engraçado que antes eu conseguia passar bem por essa sensação, mas hoje estou à flor da pele, como diz aquela música. “Eu ando tão down”. Passo tanto tempo diante das nossas telas cotidianas, nossas janelas para o mundo, e elas só têm me dado uma sensação ruim (parece que tou na abertura daquela novela de 1992, lembra?). Pulo da internet pra TV e da TV pra internet e tou chegando à conclusão (romântica?) de que o melhor às vezes é não saber, não entender, não interpretar.

É tanta misoginia, racismo, as fobias mais loucas, a violência e os preconceitos mais naturalizados que “não está sendo fácil”, como diria nossa querida Kátia. A hostilidade é tanta e invade as telas. Há dias em que quero chorar, mas não consigo. Estou seco, duro. Ontem botei um música (“O cavaleiro e os moinhos”, sabe?) e o choro veio. Não é depressão, não, acredite! É só uma fresta aberta pro mundo, mas que permite que toda a sorte de balas, furos, objetos pontiagudos e cortantes passem por ali. Os discursos são muitos e se embaralham ao ponto de produzir aquela sensação de confusão mental que comentei uma vez.

Dia desses, a televisão ligada numa sala da academia mostrava o caso do policial que atirou num ladrão de moto enquanto o dono da moto filmava. Um professor conversava com as pessoas e se dirigiu a mim: “Sabe, sou a favor da pena de morte”. “Mas eu não perguntei nada!”, tive vontade de dizer, porém fiquei quieto. “E tem que ter mais polícia mesmo!”. cadeira eletricaQue polícia? A mesma que matou Amarildo? A mesma que mata diariamente e vê o genocídio de uma parcela da sociedade como sua atividade normal? “Sabe, a sociedade precisa de segurança”. Que sociedade?  A mesma que aceita passivamente a permanência de hábitos ditatoriais na democracia? A mesma que levou o filho de Amarildo pra fazer editorial de moda? Eu podia ter estendido a conversa, mas me calei aí.

Que sociedade? – eu me perguntei.

E continuei me perguntando todos esses dias, enquanto flashes desta paisagem de 2013 foram surgindo quase que instantaneamente. Como a linguagem de videoclipe, misturo coisas e tempos deste ano tão longo (você melhor que eu sabe o quanto a memória é de natureza quântica).

Lembro nossa conversa num bar sobre a sociedade que glorifica transgressores higienizados: é Renato Russo higienizado, é Cazuza higienizado (e veja que ironia: o poetinha do Leblon, aquele cuja mãe não deixa que se mostre sua cara, agora está deificado no bairro podre de São Paulo, dividindo sua atmosfera de ídolo com os que inda vagueiam pelas ruas da Luz feito zumbis, porque a higienização do bairro ainda não se completou). E agora teve também os próceres da MPB querendo biografias limpinhas – alguns devem ter medo de que passem a limpo a história (higiênica) do que se convencionou chamar de “música popular brasileira” (que foi se construindo à custa de diminuir tudo o que não se aproximava dela – tachado então de “cafona” e “popularesco”). Êta historiazinha de poderes a da nossa cultura, hein? Todos clamando por privacidade, mas recebendo em casa os fotógrafos da Caras.

StampaTodos clamam por liberdade de expressão – desde que seja pra livrar sua própria liberdade, claro! Até porque liberdade pra oprimir com palavras continua a todo vapor na TV – ou você achou graça daquele pseudo-humorista que faz pseudopiadas ridicularizando pessoas em cadeia nacional? Você sabe que não gosto de falar alguns nomes (que as palavras têm poder e podem atrair coisas ruins), mas o tal do Danilo Gentilli continua achando legal fazer isso. E se alguém reclama ou se ofende, é por conta da chatice do “politicamente correto”. Daí a gente pensa: que sociedade podre a que fica e aceita o lado de garotinhos mimados e de discurso raso como este, não? Gente que aceita ofensa, sob a desculpa de ser “engraçada” quero longe de mim, por favor.

GENDERDeve ser a mesma gente que ganha pra ver e criticar TV, mas que insiste em chamar tudo de “entretenimento”, quando esse “entreter” se confunde com “oprimir”. Eu falei algumas vezes do ódio que tenho pela novela ironicamente chamada “Amor à Vida“? Se retrocesso é entretenimento, quero morrer! Mulher ali é gorda, é piranha. Não consigo me divertir com uma novela que só subestima as mulheres e assume a ordem machista como natural. Engraçado é que diante dela até o feminismo digestivo do Gilberto Braga na reprise de Água Viva passa a ser um bálsamo! Fora a vergonha alheia que senti quando as globais da novela-das-oito-que-passa-às-nove protestaram contra o mensalão. Mas o pior estava por vir, meu amigo: uma delas usou a lógica do protesto para fazer propaganda de joias…

Protesto, aliás, é o que não falta nesta “paisagem entre telas”, meu caro! Mas só vale como o protesto o que é chancelado pela grande mídia. Senão, é van-da-lis-mo. A palavra mais amada da imprensa em 2013! Porque só vale o protesto pacífico, ou seja, invisível.

noticiasNa TV pública, na TV privada, só se vê criminalização de movimentos sociais. Tanto que um comentarista da Globonews saiu pela porta e não voltou mais porque não concordava com a postura da emissora diante das manifestações… Mas claro que isso não é importante e não chama a atenção quando o jornalismo de todo dia usa os protestos como forma de criar medo e desestabilização. E estão fortes em seus comentadores: Pondé e Marco Antônio Villa são as ‘mentes brilhantes’ a guiar os telespectadores do Jornal da Cultura, por exemplo. No Jornal da Gazeta, Maria Lydia Flandoli (que adora entrevistar coronéis) sugeriu dia desses que a PM de São Paulo tem sido comedida (ou será “carinhosa”?) com vândalos e baderneiros. Parece, aliás, que o jornalismo só subsiste em termos de opinião – tanto que a Folha de S.Paulo deve ser recordista em colunistas (e recentemente contratou aquele Reinaldo Azevedo, o mesmo que as pessoas acham inteligente só porque vocifera em capslock e fonte colorida no blog da revista mais famosa e mais canalha do país).

talk bang

Você não acha, amigo, que informação e opinião demais devem levar à loucura?

“Que tempos são esses?”, você me perguntou outro dia e eu não pude evitar faróis baixos e um comentário pessimista sobre 2014.

Você me recrimina, diz que devo pensar melhor, mas não consigo não ver um mundo perverso, um mundo do avesso em que a reação do oprimido e ação do opressor são colocados na mesma balança. Veja: um garoto de 17 anos morador da zona norte de São Paulo foi morto pela PM; na zona sul, um cabeleireiro foi morto pela PM. (Ainda bem que você não viu que a solidariedade de nossa presidenta foi seletiva: dia desses ficou com dó de um coronel que apanhou numa manifestação, mas não ficou com pena de nenhum morto pela PM nesses tempos…) Daí que quem se revoltou diante desses crimes foi reduzido à categoria de vândalo e baderneiro. Ainda bem que você não viu também o aprendiz de fascistinha Rodrigo Bocardi do Bom Dia SP criminalizando qualquer movimento…

human right

Daí eu faço a você uma pergunta difícil que precisa ser colocada também aos zumbis que seguem sua vida de resignação covarde: Por que uma violência é permitida e a violência-resposta do oprimido não? Por que uma morte que não seja no Alto de Pinheiros não chega a comover? Por que Beagles comovem muito mais?

A resposta, meu amigo, é que estamos doentes. Estamos todos doentes.

Um abraço pra você,

Pepa

P.S.: Desculpa terminar assim, mas o papel já estava no fim e resolvi interromper pra botar isso no correio ainda hoje. Te mando no envelope umas imagens de pôsteres que achei por aí. Sei que às vezes algo visual comunica mais que palavras (Minha limitação é não saber desenhar um mundo futuro!)